“E A PALAVRA se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória” (Jo 1,14). Na Solenidade da Anunciação do Senhor, nos alegramos pela grande misericórdia que Deus nos mostrou ao entrar em nosso mundo. Celebramos Jesus de Nazaré, Deus e Homem verdadeiro; celebramos Nossa Senhora, que se tornou a Mãe do Senhor; celebramos, em certo sentido, toda a humanidade – nós também – porque o mistério da Encarnação nos diz que a nossa natureza humana tem uma dignidade altíssima, capaz até de se elevar pela ação da graça.
Na festa de hoje, nosso olhar se dirige especialmente a Jesus, o Verbo de Deus feito carne. “Contemplo-te perfectus Deus, perfectus homo: verdadeiro Deus, mas também verdadeiro homem, com carne como a minha – dizia São Josemaria, sem sair do seu assombro. Aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, para que eu nunca mais duvidasse de que Ele me compreende, de que me ama”[1]. Esta verdade de fé, unida ao acontecimento histórico, é uma fonte inesgotável de paz para nossa alma. “Deus se tornou fragilizado a fim de tocar de perto a nossa fragilidade”[2].
Ao mesmo tempo, saber que Deus assumiu a natureza humana é também um convite a deixá-lo divinizar todos os aspectos de nossa vida. No início da Santa Missa, pedimos com ousadia ao Senhor que opere em nós esta transformação: “dai-nos participar da divindade do nosso Redentor, que proclamamos verdadeiro Deus e verdadeiro homem”[3]. O mistério da Encarnação nos diz que a nossa existência tem uma dimensão maior do que apenas a existência humana, já boa em si mesma: também somos capazes de ter vida sobrenatural, de ver além do efêmero, de amar com uma força que vem de Deus, por meio de Cristo, semelhante a nós em tantas coisas.
“ALEGRA-TE, CHEIA DE GRAÇA, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28). Desde o início da sua vida, Maria teria percebido aquela proximidade de Deus, talvez pela forma como notava que Deus cuidava dela. No momento da Encarnação, porém, essa proximidade se intensifica: a vida de Nossa Senhora permanece, já na terra, intimamente unida à de Deus. A Virgem Maria pôde desfrutar de forma única esta proximidade de Deus durante os anos de convivência com Jesus em Nazaré, em meio às atividades mais simples e cotidianas. E, uma vez iniciada a sua vida pública, continuaria a compartilhar muitos momentos com Ele.
Certamente, a experiência de Nossa Senhora é irrepetível: ninguém teve tanta intimidade com Jesus como ela. No entanto, o que não podemos ver com os olhos da carne, podemos ver com os olhos da fé. Por isso, a contemplação do Evangelho é um caminho privilegiado para descobrir a Humanidade do Senhor, que a Virgem Maria conhecia tão bem. Não se trata de ler aquelas páginas “como água que passa”[4], mas com o mesmo olhar com que nossa Mãe observaria a vida do seu Filho: “Porque é preciso que a conheçamos bem, que a tenhamos toda inteira na cabeça e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de livro algum, fechando os olhos, possamos contemplá-la como num filme, de forma que, nas mais diversas situações da nossa existência, acudam à memória as palavras e os atos do Senhor”[5].
O Catecismo explica assim a transformação que experimentamos quando olhamos para a existência do Messias desta forma: A oração contemplativa “é o olhar da fé, fito em Jesus. “Eu olho para Ele e Ele olha para mim”, dizia, no tempo de seu santo pároco, o camponês de Ars em oração diante do Tabernáculo (…). A luz do olhar de Jesus ilumina os olhos de nosso coração; ensina-nos a ver tudo na luz de sua verdade e de sua compaixão por todos os homens”[6]. Como dois apaixonados, sem necessidade de muitas palavras, basta um olhar para perceber o grande e fiel amor que envolve nossas vidas.
NESSES MOMENTOS de oração confiante com o Senhor podemos aprender tantos gestos e palavras que, mais tarde, servirão de inspiração para as nossas lutas diárias. Contemplar o modo como Cristo uniu o amor divino e o amor humano pode ajudar-nos a dar esse tom de humanidade à nossa vida cristã. São Josemaria dizia que “para sermos divinos, para nos endeusarmos, temos que começar por ser muito humanos”[7]. A solenidade da Anunciação do Senhor nos lembra disto: que Deus não fica no céu. Jesus mostra-nos que é um Deus muito humano: na sua forma delicada de tratar todas as pessoas, na sua proximidade com os marginalizados, na sua preocupação pelos discípulos.
Deste modo, a contemplação de Jesus, o verdadeiro homem, alimenta não só a nossa oração, mas também a nossa missão cristã de serviço. Ele se dá a nós também fisicamente, através do seu corpo: com a sua voz, com as suas mãos que curam e abençoam, com os seus braços que se abrem para abraçar a cruz. Ele não elabora planos teóricos, mas se põe a trabalhar.
“Este modo de agir de Deus é um forte estímulo a interrogar-nos sobre o realismo da nossa fé, que não se deve limitar à esfera do sentimento, das emoções; deve entrar no concreto da nossa existência”[8]. O sacrifício que Jesus oferece ao Pai é toda a sua vida; uma entrega que abrange cada segundo da sua passagem pela terra. Esta foi também a atitude de Nossa Senhora, que com o seu fiat no dia da Anunciação confiou “nas promessas de Deus, que é a única força capaz de renovar, de fazer novas todas as coisas”[9].
[1] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 201.
[2] Francisco, Ângelus, 3/01/2021.
[3] Missal Romano, Oração do dia, Solenidade da Anunciação do Senhor.
[4] São Josemaria, Tertúlia, 02/01/1971.
[5] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 107.
[6] Catecismo da Igreja Católica, n. 2715.
[7] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 172.
[8] Bento XVI, Audiência, 9/01/2013.
[9] Francisco, Discurso, 26/01/2019.
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