A Fonte de Elias

A figura de Elias na tradição bíblica, judaica e patrística

A figura de Elias é-nos referida em 1 Rs 17 – 2 Rs 2. Natural de Tesbi, em Galaad (atual Lisbib, 13 km a norte do rio Jabbok), o seu nome significa “o meu Deus é Iavé” e o seu lema é: “Vive o Senhor, o Deus de Israel, em cuja presença eu estou” (1 Rs 17,1), testemunhando que vive sempre na presença de Deus, permanecendo unido ao Deus vivo, a Quem serve, como confidente e enviado, não num templo, que O não pode conter, mas no seio da própria vida. Situado no contexto sociopolítico, econômico e religioso da sua época, um período de grave crise do povo de Deus, Elias aparece como o defensor intrépido da fé no Deus vivo, contra Acab, rei de Israel (874-853 a.C.), homem fraco e pusilânime, dominado por Jezabel, sua esposa, fenícia, mulher sem escrúpulos, promotora do culto aos deuses da fertilidade Baal e a Aserá, que instrumentaliza o rei, a fim de levar o povo a abandonar a Deus para abraçar a idolatria. Se, por um lado, a princípio o “homem de Deus” (1 Rs 17,18.24; 2 Rs 1,6) se sente imbatível, porque transmite a sentença justa de Deus que através da seca chama o povo à conversão, mas que também intervém num gesto de compaixão universal para em favor de uma estrangeira, a viúva de Sarepta, como fonte de vida para o seu filho (17,7-24); por outro lado, precisamente quando enfrenta tudo e todos em defesa do Deus vivo no monte Carmelo (1 Rs 18), Elias sente-se incapaz de contratar o poder autoritário de Acab e Jezabel, optando por fugir, apavorado, desejando morte. É então que Deus o convida a empreender uma peregrinação de 40 dias pelo deserto até chegar às fontes da fé, o Horeb, o monte Sinai onde Deus falara com Moisés e selara a Aliança com o Seu povo (19,1-18). É aí que Elias descobre Deus, que se lhe manifesta agora, não mais através dos fenômenos tradicionais e extraordinários do fogo, furacão e terremoto, mas no rumor de uma simples brisa, tão suave que apenas é perceptível, onde reconhece a presença amiga e bondosa, discreta e poderosa, de Deus, que o abraça e sustém! Certo de que não é Deus que é salvo por Elias, mas Elias por Deus, regressa, possuído e en- viado por Ele, para escolher o seu sucessor, Eliseu (19,19-21) e ir ao encontro do povo, levando-lhe uma palavra libertadora de defesa do pobre injustiçado e de chamamento à conversão a Deus, fonte da vida (1Rs 21; 2Rs 1).

O seu arrebatamento ao céu, num carro de fogo, sem experimentar a morte (2Rs 2), transmitindo o Espírito ao seu sucessor, Eliseu, simbolizado no dom do manto, faz com que Elias seja a última figura mencionada no AT, precisamente nos dois versículos conclusivos: «Eis que vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor; ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição» (Mal 3,23-24). Desde então o povo de Deus vive na expectativa do regresso do profeta de fogo, cuja palavra queima como uma tocha, agora já não como instrumento da justiça vingativa, mas anunciando os tempos messiânicos da graça, da misericórdia e da reconciliação (Sir 48,1-14).

Se no AT o profeta Elias tem algum significado, é só no NT que a sua figura adquire relevo. Para nos limitarmos às menções explícitas (as implícitas são numerosas, p. ex., João Baptista, ressurreições, vida no Espírito, cf. Jo 3,8 com 1 Rs 18,10), basta dizer que Elias é a figura do AT que abre o NT (cf. Lc 1,17), sendo a primeira figura bíblica com quem o próprio Jesus compara a sua atividade (cf. Lc 4,25-26) e também o primeiro personagem do AT com quem as pessoas confundem o rabi da Galileia (cf. Mt 16,14 p; Lc 9,8). É ainda em Elias que Jesus se inspira na segunda fase do seu ministério, marcada pela rejeição, durante a qual se dedica mais à formação dos discípulos (cf. Mc 9,4-5, transfiguração), sendo a Elias que os presentes no Calvário associam a morte de Jesus (cf. Mc 15,35-36; cf. Sir 48,11) e ao seu “arrebatamento” ao céu que
S. Lucas associa a ascensão de Jesus (cf. 2 Rs 2,9-11; At 1,2.11).

Ao profeta Elias, como precursor do Messias, refere-se também de forma incisiva a tradição judaica que, até aos nossos dias, o considera um persona- gem vivo que acompanha Israel na sua peregrinação pelo mundo, estando presente nos grandes momentos do percurso da fé: por ocasião da circuncisão do recém-nascido, ao oitavo dia, a “cadeira de Elias” simboliza a sua presença como testemunha (cf. Mal 3,1, “o Anjo da Aliança”); na ceia pascal a “cadeira de Elias” fica vazia, pois, segundo a crença rabínica, o profeta deve visitar as famílias na noite de Páscoa a anunciar a vinda do Messias. Ainda nesta ceia, o último dos quatro cálices de vinho, a “taça da aceitação” é “a taça de Elias”, abrindo-se, antes de a beber, a porta da sala de forma a produzir uma certa agitação do ar, simbolizando a presença inefável do profeta e permitindo-lhe entrar para anunciar a vinda do Messias, quando ele chegar.

A tradição cristã oriental, apoiada na Bíblia e na Patrística, nutre por Elias um culto especial, dedicando-lhe uma memória no dia 20 de Julho, pois o considera, desde S. Antão do Egito, Pai da vida ascética e monástica (S. Ataná- sio de Alexandria, Vita Antonii, 7). Na mesma linha, S. Jerónimo e outros, no Ocidente, consideram-no o guia dos monges, cujo gênero de vida iniciara e instituira (cf. J. Smet, Los carmelitas, I, 13). De facto, Elias é o primeiro profeta do AT virgem, radicalmente pobre, sempre aberto e obediente às moções do Espírito. Tido como modelo de ascese e contínua oração (Tg 5,17s), Elias é transformado, no seguimento do Senhor, para, como fruto maduro da força purificadora e renovadora do amor de Deus, operar, mediante fé, «curas, sinais e prodígios» (At 2,22; 4,30), anunciando na própria vida o advento do Filho de Deus. O profeta Elias é assim o modelo acabado da vida no Espírito, sendo o primeiro a alcançar, por misericórdia de Deus, a theosis (deificação ou transformação divinizante), mediante a sua própria “transfiguração” em Cristo.

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