A história do Eremitério Fonte de Elias
O pedido de um jovem confrade para escrever alguma coisa sobre a nossa vida na comunidade eremítica, aqui no Alto do Rio das Pedras em Lídice, deixou-me um tanto embaraçado. Vida eremítica faz pensar em solidão, em apelo ao silêncio. Falar de silêncio e solidão só tem sentido se as palavras desembocam de novo em silêncio e solidão. Lembrei-me das palavras do Superior Geral da Ordem Cartusiana numa entrevista em que o repórter fazia perguntas sobre a vida dos monges de La Grande Chartreuse na região montanhosa da França perto de Grenoble: “Aqui, nesta solidão, cada um é como que forçado a abrir a porta do seu coração. É só na solidão que alguém vai se conhecendo a si mesmo e cria-se espaço para buscar a Deus”.
Como nasceu o Eremitério “Fonte de Elias”
Foi em 1977 que me encontrei casualmente com Dom Raimundo Lui, Bispo emérito de Paracatu. Conversa vai, conversa vem, descobrimos que tínhamos em comum um desejo de viver um estilo de vida mais contemplativa. Antes de ser bispo, Frei Raimundo tinha passado alguns anos no convento eremítico da Ordem, em Wölfnitz (Áustria), fundado na década de 1950, pelo Prior Geral Kiliano Lynch. Combinamos uma ida de Dom Raimundo a Angra dos Reis, onde eu morava, para vermos juntos as possibilidades de realizar o nosso desejo. Uma pessoa do Frade, povoado no município de Angra dos Reis, mostrou-se disposto a ceder um pequeno terreno de sua propriedade, situado num bosque não distante do lugar. Era o dia 18 de novembro de 1977. No dia seguinte, recebi um telefonema de Brasília com o pedido de apresentar-me na Nunciatura Apostólica. As conseqüências dessa visita iriam desfazer o nosso projeto de vida eremítica, pois tratava-se de minha nomeação a bispo auxiliar da Diocese de Barra de Piraí-Volta Redonda. Dom Raimundo estava presente na minha ordenação episcopal em sinal de solidariedade fraterna.
Os vinte anos passados no exercício do ministério episcopal não apagaram o desejo de um estilo vida mais contemplativa. Às vezes aparecem na vida sinais que não só fazem sobreviver uma aspiração mas até a estimulam. Em 1976, morando no convento de Angra dos Reis, comecei a assumir, em fins de semana, a paróquia de Lídice devido à despedida do nosso confrade frei Paulo Kogelman que ali era pároco residente. Foi assim que conheci o Alto do Rio das Pedras e as famílias dos lavradores que moravam espalhados nessa região montanhosa, a 10 km de Lídice. Bem mais tarde, já tinha 15 anos de Bispo diocesano de Itaguaí, um dos lavradores mandou-me uma carta, escrita pela professorinha, pedindo que fosse ao Alto do Rio das Pedras para celebrar a missa por ocasião das bodas de ouro do seu casamento. Talvez para reforçar o convite, acrescentou que havia uma surpresa para mim. A surpresa consistia na doação de um pedaço de terra para construir uma casinha onde, de vez em quando, eu pudesse passar alguns dias para descansar das minhas atividades que, de fato, não eram poucas. Aceitei a doação e, com ajuda de amigos, construí a casa, colocando-a também à disposição de padres e religiosas da Diocese, que quisessem passar alguns dias no ambiente repousante do Alto do Rio das Pedras.
Após um longo discernimento resolvi, depois de completar 65 anos, pedir ao Santo Padre a permissão de renunciar ao governo pastoral da diocese para abraçar um estilo de vida contemplativa. Diante da mudança que esta opção implica, não achava prudente adiar a realização deste meu desejo até os meus 75 anos, visto que ela exigia certas condições de adaptação que normalmente vão diminuindo com o avançar dos anos. Escrita a carta e entregue na nunciatura para que a transmitisse ao Vaticano, só restava esperar a resposta. Esta demorou mais de um ano para chegar! Finalmente. em outubro de 1998, mudei para o Alto do Rio das Pedras.
Não demorou muito tempo para que, aos poucos, pessoas amigas ou conhecidas começassem a subir para o Alto do Rio das Pedras desejando fazer um retiro. Surgiu assim o problema de hospedagem. O que me levou a construir uma meia-água que me serve até agora de moradia, deixando a casa para os hóspedes. Além disso, precisávamos de um lugar onde celebrar a eucaristia. Levamos dois meses para quebrar uma pedra enorme que havia no terreno do eremitério para construir com os pedaços uma capela de pedras naturais. A capela é dedicada a Nossa Senhora do Carmo.
Algumas reflexões sobre vida eremítica
A palavra solidão tem na linguagem cotidiana uma conotação negativa. Os dicionários geralmente lhe dão como sinônimos: abandono, isolamento, acentuando assim que a natureza humana tem um impulso inato ao convívio social. Ao mesmo tempo, porém, existe na natureza humana uma busca de solidão devido a uma profundidade do nosso ser que dificilmente se abre no vai-vem incessante do tráfego da vida. Sem entrar na questão da etimologia dos termos, a experiência nos diz que a fuga de toda solidão, é sinal de que a nossa solidez interior e a nossa solidariedade deixam a desejar. Não é difícil constatar que numa sociedade de consumo com suas tendências totalitárias, que presume ser capaz de atender a todo desejo humano, a solidão torna-se uma urgência. É claro que amar a solidão não implica simplesmente na procura de lugares ermos. Há um pensamento de Thomas Merton cuja atualidade chegamos a captar nos nossos dias talvez melhor do que na época em que ele o deixou por escrito: “O homem torna-se solitário no momento em que, seja qual for seu ambiente externo, toma, de repente, consciência de sua própria e inalienável solidão e compreende que jamais será outra coisa senão um solitário”. Trata-se de um direito ao silêncio e à liberdade interior. A própria sociedade depende desta solidão inviolável de seus membros.
Não creio que a vida eremítica seja para nós carmelitas uma simples curiosidade histórica, eventualmente objeto de um interessante trabalho acadêmico ou motivo de um aprazível passeio. É bom lembrar que a vocação do Carmelo responde a uma aspiração ontológica do ser humano. Não é de admirar que essa necessidade antropológica de solidão se reveste através dos séculos de características religiosas, não só no cristianismo, mas também em outras tradições religiosas. A pessoa humana está sempre em busca de Algo ou de Alguém – seja qual for o nome ou a imagem com que é representado – para preencher o seu espaço interior profundo. A antropologia cristã se baseia na “imagem e semelhança de Deus” que penetra fundo a criatura humana. Santo Agostinho comenta: “Digamos tudo quanto dissermos e quanto quisermos dizer, há uma realidade indizível: chama-se Deus. Dizendo Deus, o que dissemos? Esta única sílaba é toda a nossa expectativa. Tudo o que conseguimos dizer, fica sempre aquém da realidade. Dilatemo-nos para ele, e ele, quando vier, encher-nos-á”.
Ninguém abraça a vida eremítica para fazer alguma coisa, nem para adquirir alguma coisa, mas para SER. É o início e o fim da caminhada porque o ser humano vem de Deus e volta para Deus. No fundo, ser indica algo que já se possui por criação e por graça divinas. Aqui se aplica bem a letra de uma música italiana, ainda que escrita em outra perspectiva: A solitude que Tu me regalaste, eu a cultivo como uma flor.
Não se trata de um simples desejo entre tantos outros desejos nossos, mas de uma aspiração fundamental, uma urgência interior. Se alguém vai para o deserto, é que deve ter percebido de alguma maneira esse objetivo último da vida por uma experiência que se inscreve na própria prática da vida. De outro lado, não iria para o deserto se, ao mesmo tempo, não tivesse percebido a ausência do mesmo objetivo, a consciência de ainda não o ter atingido.
O texto atual da Regra que Santa Teresa chamava, erradamente, de Regra primitiva, continua a dirigir-se, na saudação inicial de Santo Alberto, “aos eremitas que vivem junto à Fonte no Monte Carmelo”. Isto, mesmo depois das modificações introduzidas na Regra por Inocêncio IV em 1247, que nos incorporaram, enquanto Ordem religiosa, na Igreja na categoria das ordens mendicantes. A tendência eremítica, porém, continua sendo uma marca de nascença que a Ordem do Carmo ao longo da sua história nunca conseguiu esconder. Na implantação da sua reforma, Teresa de Ávila dizia às suas filhas: “O estilo que pretendemos levar é de ser não só monjas, mas eremitas”. A Reforma Turonense bate na mesma tecla ao afirmar, no Diretório dos noviços, que o fundamental da vocação do carmelita, mesmo morando nas cidades populosas, consiste em “comparecer na presença de Deus em solidão, silêncio e oração contínua, seguindo o desejo do nosso pai e fundador, o profeta santo Elias”.
Em 2004, num dos seus números, a revista Civiltà Cattolica, dos jesuítas italianos, publicou uma pesquisa sobre os eremitas modernos, calculando-os em 20.000. Aparecem principalmente em sociedades mais secularizadas. Na Itália devem ser em torno de 1.200, na França, mais de 3.000. É significativo que o novo Direito Canônico, publicado em 1983, reconhece a vida eremítica como expressão de vida consagrada. O Cânone 603 que trata desse estilo de vida é um fato novo. Recentes dados nos informam que também na Família Carmelitana o número de eremitérios cresceu. Talvez sejam estas informações que tenham motivado o pedido para escrever algumas páginas sobre o eremitério carmelitano em Lídice.
Eremitas em fraternidade
No início de maio de 2005, os dois Provinciais Frei Geraldo D’Abadia e Frei Francisco de Sales, e o Comissário do Paraná, Frei Edmilson, fizeram uma visita ao eremitério. Quiseram verificar de perto a possibilidade de um projeto de um eremitério interprovincial que pudesse acolher religiosos e religiosas carmelitas que desejassem passar um tempo forte e mais prolongado em “recolhimento espiritual”. Da nossa parte, pusemos o local à disposição da Família Carmelitana para essa finalidade. Logo depois da visita ao eremitério, os três foram participar em Mairiporã do 3º Encontro dos/as Superiores/as Maiores Carmelitas do Brasil. O Projeto do Eremitério foi uma das propostas a serem discutidas no encontro. Foi aprovado com unanimidade, visando beneficiar membros de toda a Família Carmelitana no Brasil. A propriedade do eremitério passará à Província Santo Elias. Para as construções que as Províncias ou as Congregações femininas fizerem, se terá o cuidado de legaliza-las através de um estatuto especial.
Apoiando-nos na aprovação dos/as Superiores/as Maiores, ampliamos o terreno do eremitério e iniciamos a construção de mais celas individuais e separadas, levando em consideração a chegada de alguns candidatos para o início de 2006. São ao todo quatro celas além da meia-água que continua a servir-me de moradia e da casa dos hóspedes.
Atualmente a comunidade eremítica “Fonte de Elias” é composta de cinco membros: Frei Roberval (da Província de Pernambuco), Isa Maria (leiga), Márcio (leigo), Ir. Alice (Carmelita Missionária de STMJ), e D. Frei Vital. Como comunidade eremítica somos marinheiros de primeira viagem. Discutimos juntos o horário de cada dia para os atos litúrgicos em comum, trabalhos manuais, refeições em comum, permanência nas celas e os encargos para cada um de nós. Para a manutenção da comunidade iniciamos a fabricação de velas que, em vista das encomendas de círios para a próxima festa da Páscoa, ocupa a maioria dos eremitas nas horas do trabalho artesanal. Com tudo isso, a comunidade conta também com uma presença regular de pessoas de fora que vêm para fazer um retiro e participam, na medida do possível, dos atos comuns. A caminhada está ainda no início e, aos poucos, vai mostrando em que podemos melhorar. Melhorar para poder perceber, sem ansiedade, que a solidão exterior que procuramos com humilde seriedade, nos confrontará sempre com a possibilidade não realizada da “perfeita solidão”. A esperança é o segredo da vida eremítica.