Há vários séculos, distinguem-se entre as diversas formas de vida religiosa, a vida ativa, a contemplativa e a mista. Ora, há muito que os mestres da espiritualidade monástica fazem notar que não é possível fazer entrar à força a vida monástica num tal esquema. Seria de fato perigoso – e mesmo hipócrita- considerar que uma forma de vida monástica é mais contemplativa do que outra pelo simples fato de que ela não comporta atividade apostólica.
A vida monástica é contemplativa? A questão foi colocada muito explicitamente durante o Concílio Vaticano II, no momento em que se preparava o documento conciliar sobre a vida religiosa. Com freqüência compreendeu-se mal aqueles que colocavam então esta questão. Seu objetivo não era o de colocar em questão que a vida monástica tem – e deve ter – uma dimensão e mesmo uma orientação contemplativa, mas de recusar de defini-la como tal pelo simples fato de não ter ação pastoral.
Dom Jean Leclercq escreveu nesta época em Collectanea Cisterciensia (27 [1965] pp. 108-120) um artigo precisamente com este título: “A vida monástica é uma vida contemplativa?” (“La vie monastique est-elle une vie contemplative?”) Sua resposta é: Sim, evidentemente que é. Mas acrescenta imediatamente que, segundo toda a tradição monástica, chamar alguém de contemplativo não significa que pratique a contemplação num ou noutro sentido que a palavra tomou nas diversas escolas de espiritualidade desde o século XVI. Significa mais que ele pratica a oração contínua, ou ainda, que ele organiza toda a sua vida de tal modo que possa manter de modo tão constante quanto possível uma consciência amante da presença de Deus.
Para manter esta oração contínua, o monge utiliza um certo número de meios. Um deles, o mais importante de todos na tradição beneditina é o Ofício Divino; outro é a lectio divina. Esta, com efeito, segundo a tradição monástica, do Oriente e do Ocidente, é autêntica oração contemplativa e não simplesmente uma preparação à oração. Outros meios são, sobretudo, os momentos de silêncio, os momentos de maior atenção à presença de Deus, ou ainda as repetições de orações breves, a oração de Jesus, o rosário. Estes são alguns dos muitos métodos para manter uma atitude contemplativa durante todo o dia, durante todas as ocupações, aí se incluindo o trabalho.
Um ensinamento constante da tradição monástica pelos séculos é este: é-se contemplativo durante todos os aspectos de sua vida ou não se o é em absoluto. Devo claramente ser contemplativo na minha meia hora ou hora de oração silenciosa, como devo sê-lo durante o Ofício Divino e durante o trabalho, qualquer que seja o tipo de trabalho. Se não faço esforços para conservar uma comunhão contemplativa com Deus durante meu trabalho, me iludo pensando que seria transformado subitamente em contemplativo entrando na Igreja ou me ajoelhando para minha meia hora de oração.
Um outro ensinamento que consta da tradição é que a oração contemplativa por excelência, e o contexto ideal para toda a experiência mística é a liturgia. Os mais belos ensinamentos místicos de São Bernardo e de nossos Padres cistercienses se acham em seus sermões preparados para serem usados na Liturgia, ou, em todo caso, sobre os textos bíblicos lidos durante a liturgia.
Isto é sobretudo verdadeiro para a grande tradição mística, mesmo fora do monaquismo. O mais importante dos autores místicos, aquele que recolheu todo o ensinamento dos Padres antes dele e que influenciou todos os místicos dos séculos seguintes foi certamente Dionísio, o Aeropagita, ou o Pseudo-Dionísio. Ora, todo seu ensinamento místico se acha num comentário sobre a Divina Liturgia e sobre a vida sacramental da Igreja em particular.
Dom Jean Leclercq publicou em 1963 (de quem mencionei o artigo anteriormente) um estudo sobre os nomes da oração contemplativa (Jean Leclercq, Otia monastica. Études sur le vocabulaire de la contemplation au Moyen Âge. Roma [Studia Anselmiana, 48], 1963). Mostrou que a mais importante e a mais constante de todas as expressões achadas na tradição para descrever a oração contemplativa é “memoria Dei” (lembrança de Deus). Não se acha, por exemplo, a palavra “contemplatio” na Regra de São Bento; mas a “memoria Dei” é o primeiro grau de humildade, e se encontra em toda a Regra.
Freqüentemente se diz que o ensinamento de Bento sobre a oração é árido e limitado. Sem dúvida isto se deve a querer ler a Regra com um espírito muito diferente daquele com o qual ela foi escrita. Hoje se é muito atento às experiências de oração que fazemos: ao que se passa em nós enquanto rezamos ou tentamos rezar. Bento faz parte de uma longa tradição de mestres monásticos, para quem a qualidade da vida cotidiana, em todos seus aspectos, é mais importante do que a “performance” no curso dos “momentos de oração”. A convicção subjacente é que a oração é alguma coisa que “vem” bem naturalmente àquele que se esforça por viver os ensinamentos do Evangelho na vida cotidiana. Bento facilmente faria sua a palavra que Cassiano atribui a Santo Antão: “A oração não é perfeita enquanto o monge estiver consciente ou de si mesmo ou do conteúdo de sua oração.”
Da mesma forma, São Bernardo utiliza pouco a palavra “contemplação” mas “lembrança de Deus” está no coração de seu ensinamento. Escreve, por exemplo: “A lembrança de Deus é o caminho para a presença de Deus. Quem quer que guarde os mandamentos presentes no espírito, a fim de observá-los, será recompensado a seu tempo pela percepção de sua presença.” (Sent 1.11; SBO 6b.8-17-21) (Ver artigo de Michael Casey sobre “Mindfulness of God in the Monastic Tradition”, Cistercian Studies 17 [1982], pp. 111-126).
Bernardo, como Bento, está consciente do fato que, no mosteiro, os monges realizam a dimensão contemplativa de sua vida de modos diferentes, segundo sua vocação e segundo os papéis que são chamados a desempenhar na comunidade. Fala de duas categorias de monges: os claustrales e os officiales ou obedientiales, que chama também de obedientes. Os claustrales são aqueles que não têm nenhuma responsabilidade administrativa, os obedientiales são os que são chamados a suprir diversos serviços na comunidade. Cada um é chamado a ser contemplativo de um modo que lhe é próprio. Cada um deve praticar a memoria Dei, e isto não quer dizer que ele deva pensar continuamente em Deus de modo ativo, mas que deve espontaneamente fazer referência a Deus em tudo o que pensa, faz e acontece.
Bernardo volta mais de uma vez em seus escritos à tensão vivida por todos aqueles que, na comunidade, têm importantes responsabilidades administrativas, quer seja de ordem material, quer espiritual. Em primeiro lugar faz uma advertência contra o perigo de aspirar a tais responsabilidades, mas ensina tamém que para um monge que recebeu tais encargos, isto pode ser para ele a ocasião de um despojamento radical que o faz renunciar a seu próprio lazer e assumir uma grande parte do peso de preocupação da comunidade, de modo que seus irmãos possam gozar da solidão e da paz. Esta foi, sem dúvida, a vocação de Gérard, o irmão de Bernardo e celeireiro de Claraval, a quem Bernardo paga um tal tributo no seu Sermão 26 sobre o Cântico dos Cânticos.
Todos aqueles que têm muito a fazer a serviço da comunidade devem se esforçar para conservar suficiente tempo para a oração, a leitura e a meditação. Mas isto não é suficiente e nem mesmo é o essencial. O essencial é que toda nossa atividade seja enraizada numa oração contemplativa, realizada num clima e num espírito de oração, e nos leve sem cesssar a ela.
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