Algo desconfortável ocorre com a vida consagrada. Murmurações, fofocas, indisponibilidade, afetos doentios, excesso de exibição virtual e, o mais cruel, um cansaço marcado pelo egocentrismo. No entanto, no princípio não era assim. Por isso, precisamos daquela conversão que nos pede o Evangelho: mudar a direção, enveredar por um outro caminho.
Por que chegamos a tal ponto? Foi uma inculturação errada que fizemos no mundo. Éramos para encarnarmos na cultura, a fim de tornarmos credível a mensagem do Reino aos nossos contemporâneos, mas nossa imersão foi num tecido social diferente daquele que optou Jesus em sua vida. Jesus optou pelo nada, a fim de oferecer Deus aos homens. O cansaço, seja pessoal ou institucional, é o resultado do excesso de atenção a nossa própria imagem, fato que nos faz viver fragmentados. Nosso tempo gira em torno de nossa vida burocrática, no entanto há um tempo a ser vivido diferente e é aquele dedicado a descobrir o “mundo do outro”. Há duas correntes degenerativas da modernidade que nos agarraram sem que percebêssemos: o ateísmo prático e o niilismo.
O ateísmo prático revela um aspecto assustador da vocação. Trata-se da profissão de fé num valor transcendental que, lá no fundo, custa a própria pessoa em acreditar. O indivíduo professa-o publicamente, mas não leva uma vida à altura dos valores espirituais. O fundamento da vida não é mais crer num princípio supremo, pois tudo é explicado a partir de um pragmatismo ou historicismo, ou seja, só vale aquilo que o próprio homem pode construir. Deus vai saindo do horizonte, tornando-se distante e sem muita relevância. Por exemplo, no púlpito eu prego sobriedade de vida, simplicidade, confiança na providência divina, mas entro em pânico quando sou privado de bens e de lugares que eu gostaria de ter e de estar. O consagrado para sentir-se seguro adota um estilo de vida caro e se incultura numa sociedade de aparências, frequenta círculos luxuosos e gasta pouco tempo com a massa ferida que representa o corpo de Cristo hoje. Esse ateísmo prático nos faz enxergar que a melhor vida é a do vizinho, pois aparentemente ele tem o que eu gostaria de ter. O tempo não é mais para experimentar Deus, mas deve ser ocupado com atividades de desempenho que me dão satisfação e reconhecimento.
Talvez um bom caminho para abrirmos nossos olhos acerca dos efeitos nefastos dessa erva daninha é despertarmos para a mística de abandono em Deus. Se cultivamos mais simplicidade de vida, então nos reconciliamos com aquelas tensões que roubam a paz. Madre Teresa dizia: “É fácil amar a Deus por aquilo que Ele nos dá. Eu quero amar a Deus por aquilo que Ele tira”. Abandonar-se é exercitar a confiança, sobretudo quando as noites nos assustam. Uma segunda via alternativa para nutrirmos um senso crítico com o ateísmo prático é a oblatividade. Nossas províncias religiosas concentram-se muito em projetos de autopreservação, mas poderíamos ser mais felizes se não elaborássemos filosofias que bloqueiam a missão, ou seja, novas presenças que nos põem diante de rostos desconhecidos, novas comunidades apostólicas mais centradas na fraternidade e em encontros que nos humanizam.
O ateísmo prático conduz a pessoa para um outro abismo: o niilismo. Nada, nenhuma certeza espiritual serve para sustentar a vida. Enquanto o ateísmo prático se apoia em explicações materiais, o niilismo pretende convencer o sujeito que sua vida não vale a pena, então deixa-se as coisas acontecerem como mera sucessão de fatos, sem sentido algum. Para um consagrado, isso se reflete na falta de profecia, no deixar-se absorver por uma maioria esmagadora que tem medo de sonhar e de arriscar. Se a vida não vale, então vamos seguindo sem rumo, sem saber aonde chegar e sem dar importância à vocação.
Os consagrados, que caíram na armadilha do niilismo, são extremamente pessimistas. Não apoiam as novas gerações em seus projetos. Contentaram-se com o bem-estar oferecido pela rotina conventual e nem querem ouvir algo de novo que pode romper o status quo da vida congregacional, pois sabem que isso pode exigir mais fé deles. O niilismo tornar-se sistêmico quando uma família religiosa deixa de acreditar no poder de seu carisma.
Na vida consagrada o niilismo tem uma irmã gêmea, ela se chama acédia. Perde-se o apetite em viver. Não se tem emoção e ninguém quer mais vibrar com nada. A acédia é tão cruel que tira o colorido da vida, tornando-nos como cadáveres abandonados que foram esquecidos de ser sepultados. A acédia e o niilismo apagam o fogo que fazia arder a paixão pelo carisma, pela missão, minando nossa ousadia de avançar para as águas mais profundas da evangelização. Muito conforto, tudo organizado, nada nos falta, enfim a famosa manutenção são alguns dos graves sintomas que ilustram uma vida consagrada cansada e deprimida.
Há uma fórmula para nos acordar desse sono da indiferença: “Deus está!”. Aqui assumimos o sentido último e nos deixamos guiar por uma nova possibilidade de futuro. Isso significa retomar o caminho da fé, mas agora de um modo mais radical, como aquele que impulsionou Jesus para o mistério do Pai e do Reino. Essa fé arde, nos inquieta e nos questiona. É um despertador de nosso delírio de confortos, de poder. Essa fé é uma reviravolta existencial, pois faz ver diferente e com mais esperança.
Cada um se dê conta desse sinal vermelho, pois só uma parada mais demorada poderá ajudar a abrir o coração para o essencial da nossa consagração. É bom fazer travessias e é maravilhoso quando descobrimos que são os sinais dos tempos que nos pedem um novo modo de viver a nossa consagração no mundo.
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